FOLHAS DO DIÁRIO DE DUDU CLEMENTINO

Hoje dei por mim a vasculhar tralhas velhas no meu sótão, dando com um poeirento e carcomido pelos tempos baú, com recordações do meu hexavô Dudu Clementino. Fora um grande homem: agricultor abastado, Regedor da freguesia e presidente da AAC – Associação dos Amigos da Carica, modalidade muito em voga antanho.

Eis que dou de caras com um diário, encadernado numa belíssima pele de carneira e debruado a ouro, escrito com uma finíssima pena de pato.

Folheei-o ao acaso:

“

5 de Dezembro de 1505

O Jaquim das Morcelas precisa de alargar o barraco à custa dos baldios. Fui lá oferecer os meus préstimos, como regedor. Ora vejam-me lá o palerma: queria-me dar uns cabritos e um alqueire de morcelas.

11 de Fevereiro de 1506

Hoje acordei bem disposto. O Emílio galego, o Emílio Mendez da fruta, precisou de mais um favor. Mas este já sabe o que a casa gasta: chegou-se logo à frente. Mas hoje levei o embrulhinho directo ao Vitorino Temporão, o secretário da freguesia. Bem, verdade seja dita, já não tenho muito espaço na carroça.

8 de Março de 1507

O dia correu-me mal. Ia eu descansado na minha carroça, quando ouvi um tropel desenfreado de cavalos: era o Sargento Avelar, da Guarda Real e mais não sei quantos cavaleiros. Brandindo um pergaminho qualquer de um juiz de fora, viraram a minha carroça do avesso e levaram-me os meus 60.000 guinéus que eu, tão cuidadosa e diligentemente, guardara debaixo de um fardo de palha.

14 de Abril de 1508

Uff! Foi tremido mas lá ganhei as eleições ao Cisco Kid. Mas ando preocupado. Não sei quanto tempo durará este mandato.

30 de Junho de 1508

Aconteceu o que temia: chegou o dia. Lá vou eu para o pelourinho.

4 de Julho de 1508

O meirinho apregoou a sentença: 30 vergastadas em público e oito anos no aljube ou, em alternativa, degredo além-mar.

20 de Julho de 1508

Aí vou eu de caravela a caminho do exílio, para as novas Terras de Vera de Cruz. Ouvi dizer que há lá bons jogadores de carica…Por falar em carica, o Tenente Gonçalo é que se safou: subiu a Presidente. E o meu primo cangalheiro, o Clementino, finalmente passou de suplente a efectivo.”

Coitado do meu Vovô.

Tenho dito,

Dudu Laranja, de minha graça.

Esta prosa é pura ficção. Qualquer semelhança com factos passados ou arquivados na Torre do Tombo é mera e pura coincidência.